Isabel Cortez: “Com organização e luta, conseguimos eleger uma gari deputada federal no Peru”

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Isabel Cortez, deputada federal pelo Peru, é “barrendera”, trabalhadora de limpeza pública. O termo equivale ao “gari” no Brasil. Já no país vizinho, a grande maioria da categoria é composta por mulheres e, juntas, elas conseguiram o apoio de outros trabalhadores e trabalhadoras para eleger pela primeira vez uma gari para o Congresso Nacional do Peru. 

 

Isabel Cortez esteve em Fortaleza na semana passada, participando de um evento, e foi convidada pelo SEEACONCE a falar aos diretores e às diretoras do Sindicato, a trabalhadores de limpeza pública e de asseio e conservação e a outras lideranças e interessados em ouvir seu depoimento de luta, organização, vitória de uma representante popular nas eleições marcadas por predomínio de homens (280 dos cerca de 330 parlamentares federais) e pela presença de grandes empresários. 

 

Confira entrevista realizada pela equipe de Comunicação do SEEACONCE com a deputada, presidente da Comissão de Trabalho e Seguridade Social do Congresso peruano, quando da visita da parlamentar ao Sindicato. Entre outros pontos, como a organização e a luta das trabalhadoras, ela aborda a forma explícita como a direita vem tentando boicotar o governo do primeiro presidente peruano de esquerda em décadas. Confira e compartilhe:

 

 

SEEACONCE – Como se tornou possível a eleição de uma trabalhadora de limpeza pública como deputada federal no Peru? Quais foram os desafios até lá? Como foi esse caminho?

 

ISABEL CORTEZ – Talvez pelo fato de o Peru ser um país menor, em comparação ao Brasil. Talvez por isso. Na realidade, creio que essa vitória se deveu ao cansaço de tantos atropelos aos nossos direitos, pelos sucessivos prefeitos, pelas gestões da Prefeitura, pelos patrões. Sempre que entrava um prefeito novo em Lima, vinha com uma empresa nova (no setor de limpeza pública). E a empresa anterior saía. E nós íamos juntos. Ficávamos sem trabalho, nas ruas. Foram inúmeras as vezes que isso acontecia, cada vez com a demissão de 200, 300, até 500 trabalhadores. 

 

E o prefeito novo que entrava contratava a empresa, e a empresa contratava os trabalhadores sem benefícios. Salário mínimo, sem direitos, no valor de 1025 sóis (moeda peruana, soma equivalente hoje a 276 dólares). Nos organizamos e pensamos juntos: como no Peru a maioria dos trabalhadores de limpeza pública, 70%, são mulheres, o que estamos fazendo, como mulheres, diante desses atropelos, dessas mudanças de gestão municipal?

Vimos que precisaríamos ter alguém no Congresso da República. Ali se fazem as leis. Ali precisávamos de alguém que nos escutasse, nos recebesse. 

 

Víamos os parlamentares falando aos meios de comunicação que defendiam os direitos humanos, os direitos dos trabalhadores. Na realidade não era isso. Não atendiam os trabalhadores, eram inacessíveis, pediam para marcar agenda e nunca marcavam. Nos colocavam num entorpecimento. Ao final, não nos recebiam nem escutavam.

 

Vimos que precisaríamos trabalhar para ter uma representante no Congresso. Comecei a fazer visita às bases de trabalhadores de cada distrito. Comecei a conversar, a convencê-los que precisaríamos ter no Congresso alguém que nos recebesse, escutasse. Foi difícil, mas, com muita perseverança, resistência, se conseguiu convencê-las a trabalhar para ter uma congressista.

 

Havia muita descrença, no início dessa campanha, das próprias trabalhadoras?

 

Sim. Muitas delas diziam que era impossível. “Quem vai votar por ti?”. “Quem vai votar por nós, se não nos escutam, se para a população, para a opinião pública, as trabalhadoras de limpeza pública não existiam?”. “Se somos simples garis, quem vai nos escutar?”.

 

E eu respondia: “Temos que tentar”. Fazer todo esse trabalho. Precisamos ganhar visibilidade. Nosso grande problema também era não termos os grandes meios de comunicação, a imprensa, os canais. Não tínhamos isso. Então usamos as redes sociais. Para nós foi muito importante usar o Facebook, o Twitter, o Instagram e também o Tik Tok. Foram muito importantes, nos ajudaram bastante, já que não tínhamos dinheiro para pagar por anúncios nos meios de comunicação, na imprensa. Nem para fazer outdoors. Então fizemos pequenos folhetos, com as propostas, e íamos a todas as cidades, nas estações de trem e de ônibus, em horas de grande movimento, como no fim de tarde, quando as pessoas saíam do trabalho para ir pra casa. 

 

E quando eu entregava os panfletos, diziam: “É você?”. E eu: “Sim”. “Ah, que bom. Vou votar com você então”. Isso me dava ânimo, levantava energia pra seguir adiante. E assim pouco a pouco fui me tornando conhecida. As greves, as manifestações, eu sempre participava. Outros sindicatos também, os estudantes, por exemplo, quando faziam uma manifestação, com suas reivindicações, também acompanhávamos. Passamos a participar de diferentes sindicatos, como o da Saúde. E tivemos votos de outros trabalhadores, de comércio, universitários, seguranças. As feministas também. E acabamos tendo quase 35 mil votos! Uma experiência muito bonita, proveitosa. 

E qual sua avaliação do trabalho e dos desafios enfrentados como congressista, até o momento?

 

Agora estando no Congresso, seguimos uma linha. Meus princípios. Para mim, o mais importante é a honestidade Uma pessoa que sabe o que é ganhar a vida com o suor da testa sabe dar valor à honestidade. Quando estou agora no Congresso, ninguém tem que me dizer que necessitamos da lei tal, ou de tal projeto para os trabalhadores. Porque já sei qual projeto de lei é necessário pra esse setor. E procuro a melhor forma de aprová-los na Comissão de Trabalho e Seguridade Social, que presido. Tenho 22 projetos aprovados na comissão, à espera de votação em plenário.

 

Foi difícil se fazer respeitar, em meio a um ambiente de maioria conservadora, como mulher e como representante de trabalhadores de base?

 

No começo foi difícil. Pensei que havia caído em um formigueiro e que iam me picar. Mas pouco a pouco pensei: “Não! Eu sou como eles, e eles são como eu. São seres humanos e eu também. Eles têm que me respeitar, assim como eu lhes respeito. Alguém me olhava mal, fazia algum gesto negativo. Outros faziam gestos positivos. “O que acontece contigo?”, eu perguntava, com firmeza. “Respeito se conquista respeitando. Queres que eu te respeite? Tem que me respeitar”. Encaramos assim, dessa forma, vários  congressistas de direita, empresários…. Alguns donos de grandes empresas de alimentos, banqueiros… É difícil enfrentar! 

 

O machismo também é muito forte, mas estamos mudando. E digo mudando porque formamos uma comissão de mulheres parlamentares. Passamos a ter essa comissão para nos reunirmos, tomarmos decisões e trabalharmos para haver mais mulheres no parlamento. De mais de 300 congressistas, só 50 são mulheres.

 

Como digo aos meus colegas, a culpa de o machismo haver avançado não é só dos homens. É de nos, mulheres, também, porque temos que pegar o touro pelos chifres e ter a força de enfrentar as adversidades. Não permitir que as mulheres sejam vistas como a parte fraca. Somos seres humanos, assim como os homens. 

 

O Peru nos últimos anos projeta uma imagem internacional de um país mais desenvolvido, com grande apelo turístico e de gastronomia, além do turismo histórico e de natureza. Mas qual é a realidade do Peru, que não aparece tanto para quem é de fora, e que vocês vivenciam?

 

Durante décadas não tivemos no Peru um governo de esquerda. É a primeira vez que temos. Uma esquerda moderada, podemos dizer, que ganhou em 2021 as eleições.  Durante todas essas décadas a direita esteve no governo. E não aceitam ser derrotados. Não aceitam que perderam para um governo de esquerda. Não aceitam que um professor, do campo, do Interior, tenha ganhado desses multimilionários, empresários. Sempre colocavam congressistas, presidentes, entre pessoas ricas. Não aceitam que um professor do Interior seja o presidente.

 

Por isso os políticos de direita buscam uma forma de desestabilizar o País. Desestabilizar o governo. Não deixam governar. Isso também temos um pouco de medo que no Chile, Colômbia, onde os partidos de esquerda ganharam, a direita também não os deixe governar. E é isso que está acontecendo no Peru. Estão questionando qualquer coisa, interpelando na Justiça os ministros, dizendo que a eleição foi fraude. A direita, como os empresários, banqueiros, pagam pessoas para ir às ruas protestar, fazer vandalismo, saquear lojas. Pagam a essas pessoas, para que o mundo pense que o governo de esquerda não está indo bem. Por essa razão há muita instabilidade no Peru. Ficam o tempo todo buscando motivos para gerar instabilidade.

 

Os trabalhadores não têm os meios econômicos de que os banqueiros dispõem. Mas mesmo assim os trabalhadores, o sindicato, está todo dia na luta. Não é fácil. Os empresários, por exemplo, sobem o preço do combustível, em um cartel, para que as pessoas reclamem do governo, digam que o governo não está trabalhando bem. Sabem que a alta dos preços de combustível se deve à guerra da Ucrânia, mas querem colocar a culpa no governo. Os empresários que têm o monopólio dos alimentos sobem o preço, e vão aos meios de comunicação dizer que o presidente Castilho não está governando bem. Mas nós, trabalhadores de todos os setores, não baixamos a guarda. Estamos sempre dando respaldo ao presidente.